Práxis
Rian Rezende
– Eu não deveria estar aqui. – disse Tenório enquanto os pontos de Preto-Velho entoavam nos seus ouvidos, o cheiro do defumador irritava suas narinas e a fumaça se impregnava nas páginas do seu Manifesto do Partido Comunista. Mas já era tarde.
Tenório era do tipo incrédulo e racional. Uma fortaleza de convicções. Ateísta até a alma. No auge dos seus vinte e dois anos, ele tinha todas as certezas e seguranças que essa idade pode dar. Sua formação comunista e a atuação como militante do Partido só reforçavam isso. O mundo era uma certeza – um tanto quanto problemática, é verdade – mas nada que a revolução não daria jeito. E assim Tenório trabalhava diariamente, com a pressa de quem planeja e conhece o futuro e não aguenta mais o presente.
Mas a vida prega peças, e todo o herói tem seu ponto fraco, o de Tenório era Daniela. Companheira de partido, de lutas diárias, de debates teóricos e planos para o futuro, ela havia o deixado. Alguns afirmavam que foi por outro amor, outros diziam por traição à causa, e ainda tinha quem afirmava que ela não era mulher para ele. Nada disso satisfazia Tenório, nada preenchia o vazio que se abriu em seu peito, a Revolução não tinha mais sentido – e nem parecia estar tão perto como antes – e foi isso que o havia lhe trazido até ali.
O Centro Espírita Pai Benedito ficava na Rua do Riachuelo, antiga Matacavalos, na frente um antigo casarão português, a pintura descascando, os batentes da porta levemente arriados, uma construção levemente morta, nos últimos suspiros da idade, mas o som dos atabaques que ficavam do fundo do terreno, demostravam que ainda havia muita vida ali.
– Diga meu fio, purque voismicê veio cá?
Ao abrir a boca para responder, a língua ficou presa, embolada, e imediatamente a imagem de Daniela, seus cabelos castanhos, ondulados, sua pele clara, os olhos amendoados, mas principalmente a força de suas posições, suas argumentações e ah, sua voz! Como aquilo mexia com nosso revolucionário. Lembrar disso tudo deu novamente ímpeto para o protagonista, ele deixou todo o ridículo de suas convicções de lado e ele falou:
– Vim aqui devido a uma mulher. A incerteza me corrói e não posso viver com isso. – afirmou Tenório, com um tom de drama que nem ele imaginava que algum dia poderia ter.
– Ah, fio veio aqui devido a rabo de saia, né? Pai Benedito vai ajudar fio. Mas espera um momento, há alguém aqui que deseja falar com fio, e tá enchendo a paciência de Preto Velho, vou dar licença e deixar ele incorporar no cavalo para ele vir falar com o Fio. Inté.
– Saudações, Camarada! – disse a voz oriunda do médium, com um ímpeto e entonação bem diferente da que falava com Tenório poucos segundos atrás.
– Como ? – disse Tenório, a mudança brusca de interlocutor fez a imagem de Daniela desaparecer completamente da sua cabeça.
– Ora pois, sou eu, Karl Marx. Você não sabe como eu esperei esse momento.
– Karl Marx mesmo? – afirmou um novamente incrédulo Tenório.
– Sim, o autor desses livros que você tem ai na mochila. Aliás, que péssima tradução, hein? “Um fantasma circula pela Europa, o fantasma do comunismo.” Eu nunca disse isso! No máximo “espectro”, apesar de que isso não deixa de ser uma ironia, você sabe, dada minha atual condição. Mas você não imagina como outros camaradas aqui do outro lado fazem pilhéria comigo devido a isso.
– Mas você?! O que você está fazendo aqui? Você não era ateu? – perguntou Tenório, seus lábios tremiam e ele se encolhia no pequeno banquinho de madeira enquanto falava com o guia. O som do canto da giras e as vozes das outras consultas ressoavam pela sua cabeça – e por um breve momento, ele achou que iria desmaiar.
– Pois é, pois é, errei nesse ponto da minha teoria, há vida depois da morte, mas eu aceitei bem isso, você não tem ideia de como está Nietzsche, ninguém aguenta mais ele aqui, mas isso é algo menor nesse momento. Você não imagina como eu esperava essa oportunidade de agora! É difícil que um dos nossos venha num lugar como este. Tenho informações urgentes para você, o capitalismo se aproxima da crise final, e preciso que você espalhe algumas teorias, e também um certo revisionismo de minhas obras, você sabe, daqui pude ter um olhar melhor para alguns erros, e com isso, salvaremos o mundo!
– Mas e a Daniela?! – Disse Tenório, sentindo o mundo se esfumaçar ao seu redor. Se as ideias e o amor são a base de um homem, hoje para ele, tudo ruiu.
– Ah, homens! Sempre as mesmas preocupações! A crise se aproxima! Deixe esse problema pequeno burguês de lado, você terá tempo para isso depois. Cambono, venha cá! – o sotaque alemão era forte, o que acabava chamando a atenção de outras pessoas no terreiro. Alguns já se animavam, achando que era a volta do Dr. Fritz. Já tinha até fila para consultas.
Um ajudante do terreiro se aproximou, uma mulher magra e alta, nariz longo, cabelos castanhos, crespos, perto dos quarenta anos, ela trazia na mão algumas folhas, e um lápis bem gasto. Tenório por alguns segundos viu nela Rosa de Luxemburgo, mas depois creditou isso à sua vista irritada, o incenso fazia seus olhos arderem.
– Tome nota do que vou ditar minha filha. – Disse Marx em tom professoral, e desandou a falar.
O tempo depende do observador, e para Tenório aquele ditado durou a eternidade, as folhas iam sendo viradas, e ele ouvia sobre mais-valia, classe operária, a nova concepção de superestrutura e ideologia, dentre outros, mas Tenório notou claramente a ausência de qualquer referência ao materialismo dialético.
– Pronto, Camarada. Para essa fase inicial, era o que precisava dizer. Vá agora, e espalhe isso pelo mundo! Não poupe esforços, vá aos trabalhadores, aos jornalistas, aos sindicatos, só evite a academia, eles não entenderam até hoje o que escrevi quando vivo, imagina agora, morto.
Marx se despediu e sumiu. Pai Benedito voltou, fez uma reza em Tenório, baforou o cachimbo ao seu redor e desejou que fosse na paz de Aruanda.
Tenório levantou, a cabeça ainda zonza, e aos poucos foi saindo do terreiro, ao pisar na Riachuelo, o vento fresco lhe deu novo ânimo, seus passos ficaram mais fortes, decididos. Ele olhava as pessoas passando, pensava em Daniela, no Partido, na sua experiência com Marx, e em como tinha vivido até ali, em sua jornada e o sentido de tudo isso. Seu caminhar o levou até o cruzamento da Riachuelo com a Gomes Freire. Tenório parou, olhou ao redor para ver se vinha alguém, nada, estranhamente para essa hora da madrugada, apenas havia ele e a Lapa, um silêncio sepulcral, incomodado as vezes somente pelo som do vento que cortava as ruas. Tenório tirou da mochila o seu livro do Manifesto Comunista, colocou as novas anotações ditadas por Marx dentro dele, se abaixou e deixou tudo na encruzilhada. Fez o sinal da cruz e foi embora. Sem olhar para trás.